Eram 9:15 da manhã. Um apito soava no ar e, passados poucos instantes, o comboio começava a mover-se lentamente. Pouca-terra, pouca-terra e pouca terra ainda desbravava com o meu olhar. Um manto de neblina teimava pairar sobre a paisagem e a visão sobre todas as coisas era pouco contrastante e monótona.
O Porto estava cada vez mais distante e vi-me, então, na expectativa de sentir o deslumbre cada vez mais perto. A urbe começava a ficar para trás e em seu lugar o verde dos campos ia imperando cada vez mais. O sol parecia, finalmente, acordar e querer diluir o branco no azul do céu.
A viagem prosseguia serenamente, até que se deu lugar a um inesperado e feliz reencontro com o rio Douro, que há algum tempo havia perdido à saída da cidade invicta.
Inicia-se, assim, a pouco e pouco, o deslumbramento e vi-me embarcado numa viagem que me embalava entre as encostas e o serpentear de um rio, onde até há poucos dias se fazia a vindima. Este ritual dava agora lugar a outro, bem preceptível no ar quando se passava perto de uma adega. Sentia-se o cheiro da uva no lagar.
Debruçado sobre a janela do comboio, imaginei o esforço com que outrora, sem ajuda das máquinas de hoje, se fizeram socalcos e vinhas em terrenos tão íngremes.
Tinha, diante dos meus olhos, o reflexo de muito trabalho, suor e toda uma paisagem moldada com a força e sabedoria do Homem ao longo de centenas de anos. Mas, tudo tem um propósito e foi aqui que, da conjugação de vontades do Homem e da natureza, nasceu um dos melhores vinhos do Mundo. “Valeu a pena!!” - pensei eu.
A viagem seguia o seu rumo, sem sobressaltos. Porém, a cada curva do comboio revelava-se uma nova imagem, desejando que esta ficasse gravada na minha mente e logo de seguida na máquina fotográfica que levava comigo. Parecia um daqueles homens de olhos em bico, aos quais, por certo, não escaparia ao disparo da maquina fotográfica nenhum dos barcos rabelos, no sobe e desce do rio, ou qualquer casa vinícola situada na margem ou encosta do Douro.
De clic em clic, e sempre lado-a-lado com o rio, passei pela estação da Régua e do Pinhão, até chegar ao Tua – o local escolhido para almoçar e contemplar o Douro.
Já passava das 13h e no “Calça curta” aguardava-me um aromático prato de javali servido com arroz, batata cozida e salada. Entre as garfadas, degustava um vinho da região, como não poderia deixar de ser, um tinto maduro, encorpado, servido ao natural. Muito agradável. Afinal de contas, sempre era um tinto do Douro.
Seguiu-se, então, o café e uma voltinha a pé entre a linha férrea e a margem do rio para digerir melhor tão farta e saborosa refeição.
O relógio da estação do Tua marcava 16:15. Pouco tempo depois chegava o comboio que me levaria de regresso ao Porto – São Bento.
Pouca-terra, pouca-terra e lá fui eu, novamente debruçado sobre a janela do comboio, vendo o sol diluindo-se cada vez mais no horizonte e as sombras das encostas nos vinhedos e socalcos.
O deslumbramento desvanecia-se lentamente, mas sempre mais lento que o anoitecer. Quem conhece o Douro, sabe que o deslumbramento renova-se todos os dias, assim como a vontade do Homem. Todos os anos, com o esforço daqueles que por lá trabalham, se cumprem os mesmos rituais que dão vida a vales, vinhas, socalcos e adegas; todos os anos é cumprido o ritual de brindar com vinho a tudo isto e a futuras e generosas colheitas. Todos os anos se faz vinho, se Deus quiser.